Tudo estava branco de gelo. A noite era iluminada. Era fase de lua nova, mas as estrelas super cintilantes compensavam a falta do brilho lunar. Não havia eletricidade. A energia elétrica era rara em Urubici e um gerador funcionava apenas duas horas por noite, sendo desligado às vinte horas em ponto. Por isso, em 1959, dia era dia e noite era noite mesmo.Ninguém se arriscava sair de casa depois de a luz apagar. Fazer o que pela rua? Além do mais, havia seres de outro mundo que circulavam naquele horário. Então o grande risco era cruzar com um Lobisomem, uma Mula-sem-Cabeça, ou uma das muitas bafuntavas que habitavam as noites geladas de Urubici.
Talvez por isso, nossa permanência na rua foi uma questão de segundos. Entramos esbaforidos pela porta do ônibus, onde nos esperavam muitos de nossos parentes. Todos se cumprimentavam soltando nuvens de vapor gelado pela boca. Tio Ataíde e Tia Júlia, Tio Pedro e Tia Luci, Zito, Carlos, Tio Lauro, primas, primos… todos enrolados e com bonés enfiados até a altura dos queixos.
O ônibus era alugado para a viagem. Toda a família viajaria confortavelmente naquele moderno meio de transporte. Tratava-se de um GMC 1956, motor fora da cabine, tipo “bicudinho”, com chassi curto e carroceria da marca Eliziário. Lotação: 23 passageiros sentados.
Duas plaquetas alertavam: “Não fale com o motorista”. E, “Proibido fumar cachimbo ou cigarro de palha” Um motor potente de caminhão roncava alto vibrando todos os bancos do ônibus.
GMC, que era pronunciado GEMECÊ, sigla de General Motors Company, era a marca americana que mais tarde passou a ser comercializada no Brasil como Chevrolet.
Os bancos eram baixos, na altura das costas. Possuíam um estofamento ralo coberto com um moderno “tecido” de matéria plástica. Acompanhavam a tendência espetacular que começava a trazer para o mundo coisas novas como penicos de matéria, calcinhas de matéria, e camisas volta-ao-mundo.
Ninguém entendia porque a linha não saía. Linha era o nome usual e genérico dos ônibus em Urubici. Acontece que o motorista tinha ido no Posto do Ghizoni, para trazer uma água aquecida, que lhe servira o plantonista Martim. Tio Lauro que era muito entendido e gentil, informava às mulheres e às crianças que o parabrisa estava congelando e que seria lavado com água aquecida.
Como o motorista demorasse, eu e o Vica levantamos a hipótese de que, tendo o motorista se dirigido aos fundos do Posto de gasolina, poderia ter sido aprisionado pelo Boneco do Martim, um ser assombrado que já havíamos visto algumas vezes e de quem tínhamos muito medo. O Boneco do Martim usava um macacão da Texaco e rondava à noite pelo Posto, assustando quem xeretasse por ali.
Por sorte, os vultos que vinham do posto com um balde fumegante eram do nosso motorista e do próprio Martim, e não de seu boneco.
O parabrisa era reto e composto de duas partes. O tratamento com água aquecida foi mais caprichado na parte esquerda por onde o motorista haveria de olhar para as curvas da serras do Panelão e do Quebra-Dente.
Enfim, o motorista entrou, sentou-se ao volante, puxou uma alavanca que fechou a porta e movimentou o ônibus para emoção geral. A linha ganhou o Traçado jogando para o alto os níveis de adrenalina. Os palanques de cerca passavam pela janela em velocidade estonteante. Casas ficavam para trás. Vi a oficina do Seu Puíca passando veloz pela janela. A mãe advertiu:
– Não olha para fora, senão vai enjoar.
Então olhei para o céu. Constatei um fato curioso: Ao contrário dos pastos congelados, as estrelas não passavam. Elas nos acompanhavam. Iriam junto conosco onde quer que fôssemos.
Fiquei impressionado. Nunca imaginei que as estrelas se lançassem a correr no céu, seguindo nosso ônibus que as guiava no caminho de Florianópolis como um cometa raspando a estrada, quebrando a geada e levantando o poeirão do Traçado naquela velocidade vertiginosa de 30 km por hora.